03/10/2022

As eleições mais importantes da história do Brasil parecem marcadas por dois afetos. O primeiro é uma alegria ansiosa, diante da expectativa de superar o pesadelo. O segundo é a incerteza sobre o que virá, após a possível vitória de Lula – neste domingo ou em 30 de outubro. Será possível sonhar com a reconstrução do país em novas bases — com um governo que, além de restaurar os chamados “programas sociais”, inicie as reformas estruturais necessárias para começar a vencer 500 anos de colonialismo? Ou este projeto permanecerá bloqueado pela gargalheira de ferro neoliberal, que estrangula o país há quatro décadas?

Ganhou impulso esta semana uma ideia que pode ser abre-alas de uma saída não-conformista. É o Programa de Garantia de Emprego (PGE). Na segunda-feira (26/9), foi o núcleo de uma carta aberta dirigida a Lula pelo IFFD1 — um think-tank que reúne jovens economistas e velhos mestres, como Luiz Gonzaga Belluzzo e Antonio Correia de Lacerda. O texto está publicado também por Outras Palavras. Um dia depois, o PGE foi o tema de uma palestra da economista norte-americana Pavlina Tcherneva (Bard College), introduzida por seu colega André Lara Resende e moderada pela professora Simone Deos, da Unicamp.

Embora de nome singelo, o Programa de Garantia de Emprego tem enorme potência antissistêmica. Como política social, ele é remédio para o drama de dezenas milhões de pessoas desempregadas e precarizadas. Como ferramenta política, pode anular, na prática, anos de desconstrução das leis trabalhistas (com a vantagem de socorrer, além dos CLTs, também os trabalhadores de plataforma). Como vislumbre pós-capitalista, assinala a possibilidade de desmercantilizar o trabalho, dissociando-o da submissão a um empregador e aproximando-o da realização de tarefas necessárias à comunidade. E além destes papeis múltiplos, o PGE tem uma vantagem adicional: ele apresenta-se não como uma proposta ideológica abstrata — mas como solução concreta e viável para problemas reais que afligem e sensibilizam as maiorias.

O que parece fantasia, nas condições selvagens do neoliberalismo, já existiu no passado e existe no presente. Construído em teoria pelo economista Hyman Minsky, o PGE foi adotado de forma embrionária nos EUA, durante o New Deal proposto pelo presidente Franklin Roosevelt. Existe hoje na Índia, com enorme popularidade e eficácia. Por meio da Lei Mahatma Gandhi de Garantia Nacional do Emprego Rural (NREGA, em inglês), o Estado emprega e remunera, por 100 dias ao ano, centenas de milhões de agricultores, o que contribui de modo decisivo para a preservação da agricultura camponesa. Embora em escala menor, está presente na Argentina, por meio do plano Jefas y Jefes de Hogar.

Em que trabalharão estas pessoas – no caso brasileiro, milhões? Em sua palestra, Pavlina Tchernova referiu-se a um tema contemporâneo crucial: o desemprego tecnológico e como responder a ele. A automação e a robotização, lembrou ela, não precisam nem deveriam eliminar trabalho. Poderiam, ao contrário, liberar o esforço humano de tarefas insalubres ou exaustivas, e permitir direcioná-lo para atividades muito necessárias, ligadas ao cuidado e à coesão social. Na visão da economista, os afazeres abrangidos pelo PGE podem variar segundo a capacitação dos trabalhadores, indo dos mais simples (fazer manutenção de instalações públicas ou cuidar de jardins) aos mais complexos (organizar uma biblioteca).

Outras Palavras, 30/09
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