04/11/2022

Jornal da USP; 03/11
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Especialistas comentam o cenário da educação no País a partir da decisão do STF, segundo a qual é dever e obrigação do Estado garantir o acesso à vaga nas creches e pré-escolas para crianças até os cinco anos de idade.

No dia 22 de setembro, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é dever e obrigação do Estado garantir o acesso à vaga nas creches e pré-escolas para crianças até os cinco anos de idade. O recurso foi apresentado pelo município de Criciúma, em Santa Catarina, e o relator é o ministro Luiz Fux. A tese foi proposta por Luís Roberto Barroso. A decisão da Suprema Corte é de repercussão geral. Isso significa que, mesmo que o pedido tenha partido de um caso de um município em específico, todos os casos que enfrentam esse mesmo problema de falta de vagas em creches terão de ser resolvidos a partir dessa decisão – são quase 29 mil processos.

Essa decisão, segundo a ministra Rosa Weber, atinge não apenas as crianças –  que são as principais beneficiárias –, mas também muitas mulheres, que dependem das creches para trabalhar ou estudar. “Em razão da histórica divisão assimétrica da tarefa familiar de cuidar de filhos e filhas, o tema insere-se na abordagem do chamado constitucionalismo feminista”, disse a presidente do STF.

Boa notícia para a educação – A área da educação recebeu essa notícia com alívio. “Foi uma grande vitória, porque a porcentagem de crianças que estão fora da escola nessa faixa etária é uma das maiores do Brasil”, relata Anete Abramowicz, professora titular da Faculdade de Educação da USP. A educação é obrigatória para crianças de quatro anos para cima e o atendimento em creches já é medida constitucional.

O STF apenas reiterou esse direito e estabeleceu que, se não garantido, as famílias podem recorrer diretamente à justiça. Porém, assegurar em lei não é o mesmo que assegurar na vida real. As dificuldades encontradas para oferecer uma educação plena nessa idade são muitas.

Cenário da educação no País – O Plano Nacional de Educação previa a universalização da educação em pré-escolas até 2016 e que, até o final da vigência do plano, 50% das crianças até três anos estivessem nas creches. Desde 2017, as matrículas em creches estavam em declínio e, em 2019, apenas 27,8% das crianças de famílias pobres estavam matriculadas.

Neste ano, segundo dados do Mapa de Coleta do Censo 2022, houve um aumento considerável de matrículas na educação infantil. No ano passado, foram cerca de 8 milhões e 140 mil matrículas, enquanto em 2022 já somam nove milhões e 50 mil, o maior número de matrículas em cinco anos.

Dados do Anuário Todos pela Educação 2021 também apontam que existem desigualdades não apenas entre as regiões do País, mas também dentro delas. A região Sul é a mais bem ranqueada, com uma taxa de 44% das crianças em idade de frequentar creche matriculadas. O cenário, porém, diverge no Norte do País, que, em 2019, tinha uma taxa de 18,7% de crianças matriculadas. Outro problema é o acesso à educação – creches e pré-escolas – nas zonas rurais, onde a porcentagem é bem menor que na cidade.

Problemas de difícil solução – Não há perspectivas de melhora apenas por conta de uma decisão da Suprema Corte, pois já era um direito constitucional não cumprido antes. Os problemas, para além da oferta de vagas, estão no modo como a sociedade enxerga essas crianças, a forma de contratação de professores, a estrutura das creches e o financiamento destas pelos Estados e municípios.

“É uma cultura secular que as crianças pequenas só serão importantes quando elas crescerem. Enquanto elas não crescem, elas precisam ser preparadas. E serem preparadas significa que elas não têm valor em si”, ressalta Maria Letícia Barros, professora da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora dos campos da educação infantil.

O problema ainda é mais profundo. A preparação dos professores para lidar com crianças dessa idade é imprescindível, mas ainda é deixada de lado no País. Existe uma mentalidade de que a educação não é importante nessa idade, por se tratar de crianças muito pequenas, o que acaba resultando em contratações não qualificadas para o cargo.

“A gente viu as prefeituras falando que elas não têm condições, que não tem dinheiro e que elas vão pedir para a Federação ajudar a incorporar essas crianças, mas, de toda maneira, é uma vitória porque as crianças de 0 a 6 anos são um dos únicos segmentos sociais que não falam por si próprios”, comenta Anete.

Muitas vezes, há poucos professores para muitos alunos. Apenas na cidade de São Paulo, na rede municipal, para cerca de 54 mil crianças, há somente 9.150 professores. Também muitas das creches não estão localizadas em casas ou prédios com estruturas adequadas, o que impacta a qualidade de ensino e a convivência.

Maria Letícia lembra também que a formação de educadores para essa idade ainda é muito precarizada e deixada de lado, o que impacta diretamente na qualidade de ensino e cuidado com essas crianças. “A questão da formação de professores é uma questão séria. A questão da contratação dos professores é uma questão séria. A questão do atendimento das crianças é uma questão séria. São questões que fazem parte do contexto da educação infantil”, enfatiza.