28/07/2022
Por Juliano Spycer, antropólogo, criador do Observatório Evangélico: “Na semana seguinte à que Chico Buarque declarou que a “luta dos evangélicos contra a cultura da morte é da maior importância”, escreverei sobre violência doméstica. Meu ponto de partida uma denúncia. A Agência Pública reportou que uma rede de defensores do homeschooling no Brasil recomendou o uso de castigos físicos para educar crianças. Vi e ouvi muito sobre esse tema durante a minha pesquisa de campo, mas não como algo relacionado a evangélicos.

A primeira questão que me intrigou como antropólogo vivendo em um bairro periférico de Salvador foi notar como o termo “violência” era usado para falar sobre criminalidade e uso de armas de fogo e não sobre pais e mães aplicando surras em seus filhos.

É preciso, antes de seguir, descrever o que significa “aplicar surras” para os moradores desse bairro, para entender porque soava estranho que assaltos e assassinatos fossem entendidos como atos violentos e a atitude disciplinadora dentro das casas não fosse.

Primeiro, havia a brutalidade desse tipo de procedimento familiar que lembrava – provavelmente não por acaso – práticas para disciplinar escravos.

Fui apresentado a uma variedade de produtos vegetais usados para punir filhos. Trata-se de uma tecnologia que parte do conhecimento apurado de ramos de árvores e cipós resistentes, que não se rompem durante a aplicação dos castigos. Havia uma variedade de fontes desses produtos nos quintais ou próximos das casas, disponíveis a qualquer momento em caso de necessidade. E eles podiam ser adaptados para aumentar a experiência da dor. Por exemplo, acrescentando nós na ponta dos cipós e outras soluções que não descreverei porque isso causaria desconforto ao leitor.

Essas surras não eram, em muitos casos, atos ocasionais e, sim, ações recorrentes. Às vezes havia um motivo claro – ter roubado fruta no quintal de um vizinho -, mas, em outras ocasiões, aconteciam apenas pela deliberação soberana dos pais. Por exemplo, a falta de um filho poderia se tornar precedente para seus os irmãos e irmãs apanharem junto.

Na minha experiência como pesquisador vivendo por 18 meses em bairro popular baiano, os lares evangélicos eram os que recorriam menos à violência física contra a mulher e também contra crianças.

E da posição declarada de quem não conhece pormenores sobre o caso reportado nem sobre homeschooling, interpreto essa declaração de outro modo. Dita para os meus interlocutores, essa fala poderia soar como uma reprovação do tipo de violência intensa e feroz de graceja em lares nos rincões da sociedade. Uma violência extrema e comum que nós, vendo as coisas de longe e de fora, não conhecemos”.

Folha de S. Paulo; 27/07
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