30/06/2022
“Há uma dívida histórica. Mas ela não se resolve contabilmente. Primeiro porque é muito difícil de vender isso politicamente. Segundo, porque só ela não resolve a questão. Essa dívida se paga com investimento no futuro”, diz Gomes. “O Brasil nunca vai ser um país inovador, que gere riquezas a partir da educação, tecnologia e ciência, enquanto continuar a desprezar a população negra.”

Escritor chega ao fim de trilogia sobre escravidão travando luta por uma segunda abolição, contra homenagens a escravocratas.

Ao escrever sobre escravidão, Laurentino Gomes assumiu um compromisso –manter o “olhar atento”. Sua tarefa era conjugar passado, presente e perspectivas de um futuro constantemente negado à população negra.Já nas primeiras páginas do terceiro volume de “Escravidão”, recém-lançado pela Globo Livros, o autor confessa que tinha certa resistência a associar escravidão a genocídio até ler, com olhar atento, Abdias do Nascimento, ativista histórico do movimento negro.

Em “O Genocídio do Negro Brasileiro”, publicado em plena ditadura militar, Nascimento defende que genocídio se refere não só ao extermínio físico, mas também a aspectos relacionados à identidade de um povo.

“Quando o país se recusa a dar condições dignas de sobrevivência, na forma de moradia, educação, emprego, saúde, construção de memória, o resultado prático é o genocídio”, afirma Gomes. “O Brasil não permite que os negros sobrevivam e prosperem.”

Esse ideal genocida perpassa toda a trilogia “Escravidão”. O volume inicial, lançado em 2019, parte do primeiro leilão de escravizados em Portugal, em 1444, até a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. O segundo livro se concentra no século 18, no auge do tráfico negreiro no Atlântico. A edição derradeira, lançada neste mês, é dedicada à Independência, em 1822, e ao movimento abolicionista.

”Procuro mostrar que houve uma resistência permanente dos africanos e dos negros brasileiros à condição de escravo. Isso nem sempre se deu na forma de rebelião, de fuga, de formação de quilombo”, afirma. “A principal resistência foi encontrar espaços no sistema escravista para sobreviver, constituindo famílias, participando de irmandades religiosas, fundando terreiros de candomblé.”

A segunda abolição jamais chegou. “O Brasil é um país que deu errado porque não enfrentou o legado da escravidão. Perpetuou uma ferida que poderia ter sido cicatrizada na época —e esse projeto estava delineado”, afirma o autor, fazendo referência aos projetos dos quatro grandes abolicionistas brasileiros –Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças e Joaquim Nabuco– que iam da questão fundiária à educação.

“Havia a ideia de que o ‘sangue negro’ teria corrompido a índole brasileira, e não adianta dizer que isso ficou para trás”, diz. “No século 19 foram plantadas as raízes da mentalidade do Estado brasileiro.”

Para embranquecer o país, a aposta era a miscigenação. Diversos estudos da época estimavam que, até o final do século 20, não existiriam mais negros no Brasil. Era um projeto de Estado. O governo criou linhas de financiamento para os cafeicultores importarem brancos europeus, subsidiando suas passagens. Foi assim que os bisavós de Gomes aportaram aqui no final do século 19.

Folha de S. Paulo; 29/06
https://bit.ly/3y5dbWy