12/04/2023

Nexo  09/04
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Avanço nas matrículas aponta para maior inclusão na educação, mas políticas institucionais e práticas pedagógicas precisam ser aprimoradas

Divulgados em 2022, os últimos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que pessoas com deficiência somavam 17,2 milhões em 2019, ou 8,4% da população do país. Marcadas por disparidades de escolarização, elas enfrentam mais dificuldades para acessar o mercado de trabalho e dispõem de renda mais baixa, se comparadas com pessoas sem deficiência.

Recentemente, no entanto, a situação começou a mudar, especialmente em relação ao acesso à educação básica e superior. A mudança é reflexo da aprovação, em 2006, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (Organização das Nações Unidas) e da entrada em vigor, em 2015, da LBI (Lei Brasileira de Inclusão). Além de estimular a abertura de novas frentes de pesquisa, esse movimento tem trazido desafios para instituições de ensino, que precisam repensar suas políticas e práticas pedagógicas, elaborando estratégias de acessibilidade adequadas aos diferentes tipos de deficiência.

Na educação superior, estudantes com deficiência foram os últimos contemplados por uma lei de cotas. A reserva de vagas para alunos com esse perfil em instituições federais se tornou obrigatória com a Lei nº 13.409, seis anos depois de promulgada a Lei nº 12.711, que a partir de 2012 estabeleceu reserva de vagas para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas provenientes de escolas públicas (ver Pesquisa FAPESP nº 308). As cotas para jovens com deficiência têm viabilizado a expansão de sua presença no ensino superior federal.

“Nossa legislação tem um viés moderno e inclusivo. Hoje, o grande desafio é conseguir efetivar esses direitos”, detalha o jurista. Segundo ele, alguns artigos da LBI aguardam regulamentação, o que tem dificultado sua aplicação. Caso do artigo 2°, que prevê a possibilidade de pessoas com deficiência serem avaliadas conforme o chamado modelo biopsicossocial. “Esse modelo considera impedimentos em funções e estruturas do corpo, além de fatores socioambientais, pessoais e restrições na capacidade de participar da sociedade, para definir se uma pessoa tem deficiência e medir seu grau de comprometimento”, explica Damasceno.

Avanço da ciência baliza legislação – A conceituação da deficiência é um campo em disputa até os dias de hoje. Até meados do século XVIII, predominavam concepções pré-científicas, com um olhar majoritariamente supersticioso ou de caridade, envolvendo culpa ou castigo divino. No século XIX, a ciência médica passou a compreendê-la como patologia.

“A ciência via a deficiência como um impedimento corporal, físico e social, situando-a no sujeito e fazendo com que políticas públicas focassem na busca pela reabilitação”, explica a psicóloga Marivete Gesser, coordenadora do Núcleo de Estudos da Deficiência da UFSC. A partir da década de 1960, com os aportes das ciências humanas e sociais, emergiu outro modelo, que compreende que o principal problema enfrentado pelas pessoas com deficiência são as barreiras impostas pela sociedade. “Essa vertente propiciou um salto à produção científica, ao tirar a deficiência de um enfoque individual e patológico e posicioná-la como algo que seria neutro, caso as barreiras sociais fossem suprimidas”, descreve Gesser.

Em artigo publicado em 2022, a antropóloga Anahí Guedes de Mello, também da UFSC, detalha que, na década de 1990, a crítica feminista e teorias de estudos do cuidado ajudaram a ampliar o alcance do modelo social da deficiência, o que, mais tarde, permitiu consolidar o modelo biopsicossocial. Influenciado pelas demandas de movimentos de pessoas com deficiência, esse modelo surgiu como uma proposta da OMS e foi incorporado pela LBI em 2015.

Uma das referências nesse debate é a filósofa Eva Feder Kittay, da Universidade Stony Brook, em Nova York, nos Estados Unidos, que desenvolve trabalhos pioneiros para discutir questões de cuidado e deficiência, especialmente cognitiva, no âmbito da filosofia. Kittay é mãe de uma mulher com deficiência cognitiva. Diagnosticada com surdez na infância, Mello analisa, em seu texto, que a avaliação biopsicossocial da deficiência constitui um avanço por contemplar a interação entre a biologia e o contexto social e entre fatores individuais e ambientais.

Conforme a pesquisadora, os estudos culturais e, em especial, os estudos queer, abriram caminho para uma nova linha de reflexão, conhecida como teoria crip, traduzida para o português como teoria aleijada. “A teoria aleijada questiona os processos de naturalização do corpo ‘capacitado’ e oferece um modelo cultural da deficiência, rejeitando a ideia de que não ter uma deficiência seja um estado natural de todo ser humano.

O capacitismo impede a consideração de que é possível andar sem ter pernas, ouvir com os olhos, enxergar com os ouvidos e pensar com cada centímetro de pele”, escreve a antropóloga. O termo capacitismo foi cunhado entre os anos 1960 e 1970 e se disseminou no Brasil a partir de 2011, por meio do trabalho de pesquisadores como Mello.